quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Sobre muralhas e portas de madeira


Como toda boa moça, teve lá o seu primeiro amor daqueles cor-de-rosa. Como desde sempre foi peculiar, o seu foi vermelho. Vermelho escarlate, como as unhas pintadas e o adidas no pé. Pra mãe, coitada, pior que a filha encontrar uma barriga no meio da adolescência, só a filha achar a chave vermelha da porta de madeira na saída da escola. Um escarcéu e o escambau. A menina, transformada em Julieta e achando que ia morrer, construiu uma muralha em torno do próprio coração e foi dar um jeito de virar adulta.

Fez toda birra que pôde só pra provar tim tim por tim tim as contradições da mãe; pra se fazer aceita, é claro (já que o que toda boa moça mais quer na vida – mesmo as mais peculiares – é a aprovação da mãe), e se afirmar como adulto. Tirou nota boa, arrumou o quarto, passou no vestibular, manteve o cabelo bem cortado, a cara limpa, a cama alinhada, os livros em ordem alfabética, os vizinhos sem barulho depois das vinte e duas. Arrumou até uma princesa, dessas nascidas pra comprazer pais e mães.

Um belo dia acordou e era adulta e não havia nada que se pudesse fazer. Era adulta, e feliz por ser adulta lá no centro de sua muralha. Só tinha um problema: agora que era adulta, se sentia só (mesmo com a princesa). Sentia-se tão só quanto somente os adultos que construíram muralhas em torno de seus corações ao final da adolescência são capazes de se sentir. Sentia-se só e só.

Sentia-se tão só que foi fazer o que todos os adultos solitários fazem: descobriu a noite; fez-se boêmia; aprendeu que podia gostar de carnaval, mesmo sambando torto; criou amores imaginários (até amou alguns deles); descobriu a luxúria; aprendeu letras de músicas, a cozinhar e a manter os amigos por perto (é só colocar todo mundo alinhado à muralha e sempre oferecer boa comida através de uma portinhola que funciona); trocou cartas com muralhas vizinhas; sequestrou Rapunzels pra enfeitar a torre mais alta com suas tranças; até falou com o pessoal lá fora: “se vocês correrem em um sentido, e eu correr rápido o suficiente pro outro, a muralha some!” Some nada. Fica lá inerte e segue a moça onde for.

No meio de uma dessas incursões pela noite Belo Horizontina, entre um amor imaginário e uma Rapunzel, foi topar com outra moça torta, dessas provavelmente concebidas na noite de comemorações da queda do Muro de Berlim; a qual,nascida, depois que a década virou, com uma noção distorcida do significado de muralhas, muros e coisas feitas do tijolo, trouxe consigo pra noite um enorme peixe daqueles vermelhos que vivem no centro da Terra. De tão grande que era, enquanto as moças se olhavam, o peixe trombou com o chão tão forte que a muralha até rachou.

Sabe aquele raciocínio de criança? 'Se for brincar de bola nos fundos da casa, ninguém vai perceber que fui eu quem quebrou o vaso chinês na varanda da frente.' Ora, a muralha é espaçosa (é preciso espaço para se sentir só), é só correr na outra direção e o que os olhos não veem, o coração não sente.

Não sente, mas as noites e noites caçando fantasmas são sintomáticas. E quando de noite, se tranca no escuro do quarto e vai dormir, no fundo, sonha com o dia de experimentar de novo a sensação daquele mesmo peixe vermelho trombando contra a Terra e rachando a muralha; noite após noite, até que um dia os tijolos esfacelem e ela se sinta menos só.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Quanto vale uma década em um blog em desuso?


Quase dez anos atrás dei a este blog o seu primeiro texto.
Estressada como ando, resolvi relê-lo, o primeiro texto, como se isso pudesse servir de ritual pra novamente guinar minha vida.

Tinha, ao escrever tal texto, meus quinze anos e sofria com o excesso de tempo livre enquanto esperava o começo do meu primeiro ano de ensino médio. Decidi escrever por estar perdida em pensamentos e sentir a necessidade de gritá-los todos ao mundo, afim de espantar a angústia que deixavam em mim. Extrapolando para o mundo das lembranças, pensava em ser uma engenheira quando crescesse, e uma escritora nas horas vagas mas ainda havia muito tempo vago ate la.

Uma década, três diplomas, dez quilos e três graus de miopia depois, cá estou perdida em pensamentos e sofrendo com a falta de tempo, enquanto tento me encaixar em meu primeiro ano de doutorado.

Cumprido o ritual, fica a pergunta: quanto vale uma década na vida de uma jovem mulher de princípio do século XXI feito, inevitavelmente, eu?
Antes de reler tal texto, minha primeira resposta seria 'vale uma insônia', mas ao que minha memória falhou e o texto serviu pra lembrar, já existia a insônia naquele tempo.
Vale um bocado de coisas triviais:
Vale transformar-se de uma menina de 15 anos em uma mulher de 24 (e trocar a cara de menina de 13 anos pela cara de menina de 16).
Vale a consolidação de uma identidade de gênero e a construção de uma intrincada orientação sexual. Vale a obrigação de votar em 4 eleições e trabalhar de mesária em duas. Vale a constatação de que não importa se deus existe ou não, isso não faz diferença em minha vida (e apesar disso experimentar um crescente receio quanto aos movimentos evangélicos do país).
Vale assistir quase todos os amigos de infância sumirem no mundo e me perguntar quando foi que os poucos com que se mantêm um esparso contato online se tornaram idiotas tao grandes.
Vale sair da posição de filho que ouve a mãe dizer “você devia passar menos tempo nessa internet” para a posição da filha que diz “Mãe, você devia passar menos tempo nessa internet”.
Vale perceber que não importa quantas vezes repetimos durante a adolescência que não seremos como nossos pais, seremos inevitavelmente versões modernas deles ao crescer.
Vale assistir a irma que vi nascer se tornar uma mulher.
Vale a crescente vontade de ser mãe e a desconstrução da tradicional família mineira.
Vale um coração partido uma porção de vezes (e ter partido alguns) e uma meia dúzia de amores pra recordar.
Vale aprender a gostar de carnaval e a gostar de dançar (apesar de não ter aprendido propriamente fazê-lo).
Vale aprender a gostar de cerveja e continuar sem nunca ter fumado maconha.
Vale uns 600 filmes assistidos e 7 países visitados.
Vale (ter que) aprender inglês, e começar a ler tudo o que se pode em inglês ate que a cabeça comece a pensar em inglês (e a ortografia em português comece a atrofiar).
Vale algumas cicatrizes, 8 pontos (5 na sobrancelha esquerda e 3 no polegar esquerdo) e 4 dentes (siso) a menos.
Vale cansar de ouvir metal e passar gostar mais de música de duas ou três décadas atrás do que de música contemporânea.
Vale olhar pros próprios pés e assistir os all-stares gradativamente se transformarem em oxfords; e as camisetas, em camisas de botão.
Vale perder e recuperar a fé na humanidade mais de três mil vezes e assim aprender a viver um dia após o outro da melhor maneira possível; e descobrir o ritmo que a vida moderna exige, e algumas vezes se distrair e exceder o limite de velocidade; e então se esquecer por uns dias como se vive um dia após o outro e, assim, achar que o mundo vai acabar.
Vale esquecer biologia, geopolítica, história (e tantas outras coisas que nos ensinam antes de estarmos prontos para a vida adulta) pra sobrar espaço na memória pra mais e mais física e, apesar de ter obtido um bacharelado e um mestrado no assunto, ainda ter a sensação de que a física que sei 'e muito pouco.
Vale assistir a engenheira e escritora que eu seria quando crescesse ficando pra trás em meio a poeira e a mulher cientista brotar em terreno tao insólito em algumas estações.




Quase uma década depois daquele primeiro texto, encontro-me novamente perturbada por esse quarto com poeira a se acumular nos cantos. Quarto, este, que 'e bem menor que o de outrora, não por agora ser parte de um reduzido apartamento próximo `a universidade, mas pelo tamanho que me tornei e pelo volume ocupado pelos meus pensamentos; pensamentos que flutuam numa turbulenta atmosfera constituída de algumas boas ideias, alguns fantasmas e, sobretudo, caos. Sinto-me como um náufrago que experimentou a sensação de quase se afogar na correnteza e, após de fato se afogar, percebeu que nada muda depois que os pulmões terminam de encher-se de água. A vida apensar continua com o seu um dia após o outro. The show must go on.

Volto-me novamente a este blog como uma tentativa de organizar meus pensamentos, truncá-los, pô-los em ordem, aceitá-los, colori-los e assim recuperar a minha capacidade cognitiva e a minha licença poética.