segunda-feira, 31 de julho de 2006

"Não sei quem você é. Por favor, acredite. Não há como convencê-lo de que isso não é mais um truque deles. Não faz mal. Eu sou eu. Não sei quem você é, mas eu te amo. Eu tenho um lápis, um pequenininho, que eles não encontraram. Eu sou uma mulher, escondi dentro de mim. Talvez não vou poder escrever de novo, por isso, esta é uma carta muito longa sobre minha vida. Vai ser a minha autobiografia e... Meu Deus, estou escrevendo em papel higiênico.
Eu nasci em Nottingham, em 1957. Chovia um bocado. Passei por um teste de avaliação e fui pra uma escola feminina: eu queria ser atriz. Lá encontrei minha primeira namorada. Seu nome era Sara. Tinha catorze anos e eu, quinze. Nós duas estudávamos com a srta. Watson. Suas mãos... suas mãos eram lindas.
Na aula de biologia, fiquei ouvindo a Sra. Hird dizer que o convívio íntimo entre meninas era uma fase adolescente, que as pessoas superam. Sara superou...
...eu não.
Em 1976, parei de fingir e levei uma namorada, Christine, para conhecer meus pais. Uma semana depois fui pra Londres, pra escola dramática. Minha mãe disse que parti o coração dela, mas minha integridade era mais importante. Isso é egoísmo? Pode não ser muito, mas é tudo que nos resta aqui. São nossos últimos centímetros, mas, neles, nós somos livres.
Londres. Eu era feliz em Londres, em 1981, interpretei Dandi em Cinderella. Meu primeiro trabalho. O mundo era estranho e conturbado, com platéias invisíveis por trás das luzes quentes. Todo aquele glamour era de perder a respiração. Era emocionante e, ao mesmo tempo, solitário. À noite, eu ia pras boates. Eu não me misturava e nem fazia amizades facilmente. Eu observava tudo, mas nunca me senti confortável. Lá havia muitos que só queriam ser gay para a vida deles. Sua ambição. Era tudo de que falavam e eu queria mais do que ficar convivendo com tanta sujeira... mais do que aquilo.
O trabalho melhorou, consegui pequenos papéis em alguns filmes. Em 1986, participei do As Dunas de Sal. Ganhou todos os prêmios, mas não o público. Conheci Ruth trabalhando nele. Nós nos amamos. Fomos morar juntas. No dia dos namorados, ela me mandava rosas. Foram os três melhores anos da minha vida.
Em 1988, houve a guerra... depois disso não houve mais rosas. Pra ninguém.
Em 1992, depois que tomaram o poder, começaram a prender homossexuais. Levaram Ruth enquanto ela procurava comida.
Porque eles têm tanto medo de nós?
Queimaram Ruth com pontas de cigarro e forçaram a pobrezinha a dar nomes. Ela declarou que foi seduzida por mim.
Eu não a culpei.
Eu amava Ruth.
Não podia culpá-la.
Ela, porém... Ruth se matou. Ela não conseguiu viver depois de ceder aqueles últimos centímetros.
Oh, Ruth... Eles vieram me buscar. Disseram que todos os meus filmes seriam queimados. Rasparam meu cabelo, meteram minha cabeça numa privada e fizeram piadas sobre lésbicas.
Fui trazida pra cá e drogada. Não sinto mais minha língua e nem posso falar.
A outra lésbica daqui, Rita, morreu duas semanas atrás. Acho que vou morrer logo também.
Minha vida pode acabar neste lugar horrível, mas por três anos eu recebi rosas e não tive de prestar contas a ninguém.
Eu vou morrer aqui.
Cada centímetro de mim morrerá... exceto um.
Um só.
Ele é pequeno e frágil. É a única coisa no mundo que ainda vale a pena ter. Não se deve perder, vender ou entregar nunca. Não podemos deixar que alguém tire de nós.
Não sei quem você é, se é homem ou mulher. Talvez eu nunca veja você, nem te abrace, nem a gente beba juntos... mas eu te amo.
Espero que consiga fugir daqui. Espero que o mundo mude e as coisas melhorem. Que um dia as rosas voltem.
Queria poder te beijar.
Valerie.
"

[V for Vendetta, de Alan Moore e David Lloyd.
Capítulo 11 ¿ Valerie
Páginas 57 a 62 do volume 3.]