quinta-feira, 14 de junho de 2018

Conheci uma represa que era uma mulher.  Um monumento de concreto, desses forjados pelo homem. Recalcadamente humana: Uma imensidão homérica de beleza em formato líquido,  engenhosamente fortificada por uma barreira de concreto impecável. Lhe fizeram barragem. Não para que vivesse a sonhar em se fazer rio, mas pra que passasse a vida a girar turbinas hidráulicas,  permitindo, assim, em langoroso tons de cinza, que as vidas daqueles demasiadamente civilizados seguissem em normatividade. Feito um destino biológico, humanamente determinado.

Mesmo sem acreditar muito em destinos, talvez pelo seu fadário de represa escrito em seus muros de concreto - assim, em letras garrafais e de imprensa -  nunca lhe cantei 'I follow rivers’,  já que nunca foi história nossa a premissa de fluir em rio.

Eu, que por esses tempos envelheço, já não sou mais rio. Sou fera fêmea e feita, que corre o mundo cheia de petulância e um bom punhado de sonhos impolutos. Eu, que já me cansei do salgado do mar ao fim do rio e dos olhos de Capitu: Eu já não sigo mais rios. Retirante, eu sigo montanhas e abraço transcendentalmente o sentimento de que somente entre os altos e baixos de uma tão acidentada formação rochosa é que existe paz. Não existe nesse mundo fé que mova montanhas, e fatídica assim ela se ergue imóvel rumo a estratosfera, a me dar norte e me lembrar a direção de casa.

De quando em quando, eu deixo as montanhas. Sou bicho sazonal com sede de vagar o mundo. Na vulgaridade do meu andejar vagabundo, sou criatura de hábitos: sempre que topo de novo com a vegetação do cerrado, faço uma curva e vou lá prostrar-me ao pé da represa só pra checar se ela continua lá. Continua. E às vezes - quando coincide da lua clarear o redor - lhe flagro as rachaduras  brilhando com filetes de água a lhe escapar. Às vezes pondero se no seu continuado  rachar e vazar, um dia rebenta a represa: implodindo-se numa magnifica inundação. Talvez um dia, ao cruzar essa latitude eu encontre em seu lugar um caudaloso rio com sua própria fauna e vegetação. Talvez eu morresse afogada no processo, por estar perto demais durante o rompimento. Divago. Ao pé das imensas paredes de concreto da represa, me deixo hipnotizar momentaneamente pela sensação úmida das gotas fluídas espremidamente através da rachadura. Parece uma lágrima.

Faço isso e depois volto pra casa.

Eu, que nesses dias coleciono memórias e postais de cenas pífias, registrados em preto e branco - como deu - mas que coloro com materiais corantes e emplastos de todas as cores que teimosamente meti nos bolsos por todo caminho até aqui. Eu, que por esses tempos carrego no peito um coração de remendos, que de tanto espatifo, acabou cabendo o mundo. Eu, que ainda irremediavelmente eu: fui encontrar no respingo de água vazando da represa rachada, remédio pra ferrugem de escrever.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Bobajada Shakesperiana Pretensiosa 




Quem sou eu?
Eu já nem sei quantas horas da minha vida gastei girando em torno dessa questão. É como um vórtice de pensamento. Eu sempre gostei deles, dos vórtices, pois eles ocupam um tanto de tempo e sempre deixam a sensação de que o tempo gasto com nada foi produtivo. É um jeito de enganar a si mesmo. E eu entendo do que estou falando: Eu sou um tipo de às da auto-enganação.

Isso responde satisfatoriamente a pergunta inicial? Acho que não. Quero dizer, isso depende. Você aprendeu a se contentar com qualquer coisa? Não? Tudo bem, então me dê uma história. Uma que pareça interessante, daquelas que dariam um romance desses de auto-biografia. Pronto, agora eu vou tentar vivê-lo, e se parecer que valeu a pena eu volto pra escrever a história depois. 


Onze anos se passaram e eu não escrevi nada. Isso quer dizer que nada valeu a pena, certo?  Acontece que eu nem saberia explicar o que significa valer a pena, pra começarmos a nossa conversação. 
Então, eis a história da minha vida: Eu era uma garota, que não era como as outras garotas. Ao mesmo tempo eu era exatamente como outra pessoa qualquer no mundo:
indomável na essência.
egocêntrico na essência.

Mal educada na essência.
sozinha como essência.

Não posso negar que houve tentativa de educação. Tentaram me ensinar um tanto de coisa. Desde crochê até palavrões. Só que as coisas sempre entraram meio rasgadas e sem graça. Eu sempre tive esse dom pra histórias, sabe? Então toda essa bobagem de ensinamento moral que tentam enfiar goela abaixo quando a gente é criança, isso tudo descia rasgando, meio sem cor. Eu pegava tudo, vomitava no chão e construía uma nova versão mais colorida dentro da minha cabeça, uma mais interessante, que meu imaginário acharia melhor de ler em um romance. Por muito tempo ninguém me disse que eu não podia fazer isso. Assim, se me entregavam um mundo em tons de cinza, eu tinha uma coleção imaginária de lápis de cor,e não fazia sentido não usá-los. Por que não colorir tudo de um jeito melhor pra mim? Ora, por que se você o fizer, vão trocar o livro das regras em cinza pro livro das regras em cores imaginárias. Esse é o jeito que o mundo funciona, Julia. O mundo é só um lugar de gente falando com propriedade do que não conhece, e ele funciona assim girando, uma volta por dia.



Lidar com o mundo? Ah! Então eu lidava. Quem sou eu? Uma pessoa que lida com a vida. E na vida, tudo é um jogo. Tudo sempre foi um jogo. E se chamar de jogo não é sério e suficiente pra você, eu posso mudar a expressão para agradá-lo: A vida, em nossa sociedade, é composta de uma série de procedimentos feitos pra manter a sua cabeça limpa o suficiente pra você não olhar pra onde não deve (na maior parte do tempo: pra dentro). E eu não queria olhar para os meus demônios. Pelos relances que tive deles, em momentos de extrema auto-honestidade acidental ao longo desses anos, eu sei que se o fizer nunca mais serei capaz de ler um mundo como é descrito nos manuais.
 


Como exercício de elucidação eu posso te ensinar como seguir algum desses procedimentos (ou jogos) de viver a vida do manual. Você pode passar horas e horas, jogando sudoku ou estudando física, por exemplo, só pra ocupar a cabeça e fingir que é capaz de viver sem respostas (perguntas). Porém, se você erra no equilíbrio, a sociedade vai te dar uma paulada de cassetete pra te lembrar que (como você é um covarde) você ainda está vivendo entre os pilares da moral e dos bons costumes. Por isso, se você erra na medida e, digamos, passa o dia inteiro jogando sudoku, a sua cabeça se distrai, mas as suas notas em física vão cair e você vai se perguntar “por que eu fiz essas escolhas mesmo?”. Por outro lado, se você passa o dia inteiro estudando física, as suas notas vão ir muito bem, mas eventualmente você não vai ficar sabendo que a sua última banda favorita lançou um novo CD, e você vai voltar ao ponto: “Por que fiz essas escolhas? “. A Regra Zero do jogo é balancear as coisas. E daí vem toda a bobagem da vida como ela é:  (E quanta bobagem!) Como: Cresça, seja alguém. Vá para a faculdade, arrume um emprego, pratique um esporte, escolha uma banda favorita, vá ao cinema, não beba tanto, vote com consciência, se envolva em trabalho comunitário, recicle, encontre sua tribo, entenda o seu lugar no mundo, seja alguém. Reúna os seus iguais, cuide dos seus iguais, arranje um companheiro(a), constitua família. Nunca olhe pra trás (dentro). Entendeu? Sim? Agora volte ao início do jogo, e é a sua vez no comando: eduque (aliene). Mas faça diferente: não seja como os outros, você não quer que seus filhos sejam só mais pessoas no mundo. Eles são diferentes. Foi exatamente isso o que eu seus pais disseram? "Você é diferente, mas você poderia parecer mais normal, sabe?" Funcionou até aqui, não? Repita. O mundo ia ser melhor se você não tentasse parecer tão diferente. Que se danem! Eles nem sabem o que é o mundo, pra começo de conversa.



O mundo é um conjunto de círculos, definidos a partir de um único ponto. Existem círculos internos e externos. Guerras começam e pessoas morrem dependendo de qual círculo do outro você tentar ultrapassar com o seu ponto central. Existe o círculo que define como o mundo te vê e outro mais externo que define como você quer que o mundo te veja. Existem círculos que ninguém além de você nunca verá nem a cor (e que você pode passar a vida fingindo não ver). E existe um círculo, o mais interno de todos, dentro do qual habitam você e os seus demônios. Sim, são muitos círculos para uma única existência. Você provavelmente vai querer passar a vida toda distraída com os mais externos: é a forma mais trivial de evitar ficar sozinho com os seus demônios.



E quem sou eu? Uma pessoa que vive dentro dos seus círculos sempre fazendo um velho acordo comigo mesma: ainda é cedo pra começar a conversar com seus demônios, Julia (e se eles te convencerem a ficar?). Você gosta deles e você se sente estranha por isso. (Estranha por que você gosta, e o mundo pensa que você deveria evitá-los.) Quantas vezes já não estivemos aqui?
Você esteve lá, desde o princípio. No círculo, com eles. E você viu a verdade. Não importa quem você é. Você conhece a sua inteligência. Você sabe que não adianta deixar tudo às traças, que o mínimo esforço descuidado põe todas as engrenagens a funcionar e assim você poderia ser o que quisesse: uma bióloga, uma engenheira, uma médica, uma mãe de família. Você poderia escolhido a roupagem que quisesse, e até mesmo ter vivido o resto da vida com o cabelo pintado de azul. Mas você escolheu a física, por que a física é estereotipada como a beira do precipício. E você gosta de viver lá, na solitude da beira do precipício. Você só queria uma desculpa, uma disfarce. 



Quem sou eu?
Ora, eu sou um grande clichê! Uma moça bonitinha dividida entre o ser e o não ser. Uma moça que andou e andou em círculos e agora está aqui, vivendo sozinha num estúdio de 24 metros quadrados no charmoso centro de uma simpática cidade cercada de monumentais montanhas do velho continente. E é tudo muito poético e muito caricato. E ela sempre curtiu "caricato". E ela está aqui, e não entende a língua deles e nem eles entendem a dela. E ela está só, dentro dessas paredes. Ela está só daquela maneira que sempre temeu. Ela está só daquela forma que sempre evitou estar. E ela gosta disso. Ela gosta, por que ela se olha no espelho ela vê todos os demônios claramente dentro de si. E ela gosta deles e de suas cores, e do seu fulgurar. E ela gosta de ser ela mesma dessa forma tosca e crua. Ela gosta das cores distorcidas que o mundo tem, vistas de dentro do seu próprio círculo. E ela lembra de todas as suas tentativas de abafar seus demônios por detrás de uma muralha de estabilidade. Ela gosta, por que esse momento de solitude é o único em que ela não deve nada a ninguém. Ela gosta de poder fazer o que quiser: seja o que se quer passar o dia inteiro de pijamas, beijar todo mundo que ela ver pela frente, ou só dançar de forma esquisita no meio da tarde em torno daquele círculo que é só seu.



O que você quer ser quando crescer? 
Você queria querer ser normal e seguir o manual que tanto leu. Mas você já cruzou aquela linha no sentido ao contrário do exterior. Isso foi a muito tempo atrás. E você têm passado todo esse tempo fingindo não ter dado o ponta pé inicial. Adiando. Adiando. Sabe?, não tem mais volta. não importa o quanto você adie. Você já é livre. Agora ria sozinha, dance com seus demônios e 
então escreva, Julia, escreva. 


sábado, 27 de setembro de 2014

Textos Perdidos em Gavetas...

Sou planeta errante.
Terroso.
Nem tão pequeno que não exista atmosfera,
nem tão grande que eu seja gasoso.
Médio.
Mediano.
Meio azulado.
Meio verde.
Cheio de gente.
Gente que é morte.
Gente que é vida.
Estou em inércia,
à espera de força que me mova.

(Belo Horizonte, 08/11/2013)

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Sobre muralhas e portas de madeira


Como toda boa moça, teve lá o seu primeiro amor daqueles cor-de-rosa. Como desde sempre foi peculiar, o seu foi vermelho. Vermelho escarlate, como as unhas pintadas e o adidas no pé. Pra mãe, coitada, pior que a filha encontrar uma barriga no meio da adolescência, só a filha achar a chave vermelha da porta de madeira na saída da escola. Um escarcéu e o escambau. A menina, transformada em Julieta e achando que ia morrer, construiu uma muralha em torno do próprio coração e foi dar um jeito de virar adulta.

Fez toda birra que pôde só pra provar tim tim por tim tim as contradições da mãe; pra se fazer aceita, é claro (já que o que toda boa moça mais quer na vida – mesmo as mais peculiares – é a aprovação da mãe), e se afirmar como adulto. Tirou nota boa, arrumou o quarto, passou no vestibular, manteve o cabelo bem cortado, a cara limpa, a cama alinhada, os livros em ordem alfabética, os vizinhos sem barulho depois das vinte e duas. Arrumou até uma princesa, dessas nascidas pra comprazer pais e mães.

Um belo dia acordou e era adulta e não havia nada que se pudesse fazer. Era adulta, e feliz por ser adulta lá no centro de sua muralha. Só tinha um problema: agora que era adulta, se sentia só (mesmo com a princesa). Sentia-se tão só quanto somente os adultos que construíram muralhas em torno de seus corações ao final da adolescência são capazes de se sentir. Sentia-se só e só.

Sentia-se tão só que foi fazer o que todos os adultos solitários fazem: descobriu a noite; fez-se boêmia; aprendeu que podia gostar de carnaval, mesmo sambando torto; criou amores imaginários (até amou alguns deles); descobriu a luxúria; aprendeu letras de músicas, a cozinhar e a manter os amigos por perto (é só colocar todo mundo alinhado à muralha e sempre oferecer boa comida através de uma portinhola que funciona); trocou cartas com muralhas vizinhas; sequestrou Rapunzels pra enfeitar a torre mais alta com suas tranças; até falou com o pessoal lá fora: “se vocês correrem em um sentido, e eu correr rápido o suficiente pro outro, a muralha some!” Some nada. Fica lá inerte e segue a moça onde for.

No meio de uma dessas incursões pela noite Belo Horizontina, entre um amor imaginário e uma Rapunzel, foi topar com outra moça torta, dessas provavelmente concebidas na noite de comemorações da queda do Muro de Berlim; a qual,nascida, depois que a década virou, com uma noção distorcida do significado de muralhas, muros e coisas feitas do tijolo, trouxe consigo pra noite um enorme peixe daqueles vermelhos que vivem no centro da Terra. De tão grande que era, enquanto as moças se olhavam, o peixe trombou com o chão tão forte que a muralha até rachou.

Sabe aquele raciocínio de criança? 'Se for brincar de bola nos fundos da casa, ninguém vai perceber que fui eu quem quebrou o vaso chinês na varanda da frente.' Ora, a muralha é espaçosa (é preciso espaço para se sentir só), é só correr na outra direção e o que os olhos não veem, o coração não sente.

Não sente, mas as noites e noites caçando fantasmas são sintomáticas. E quando de noite, se tranca no escuro do quarto e vai dormir, no fundo, sonha com o dia de experimentar de novo a sensação daquele mesmo peixe vermelho trombando contra a Terra e rachando a muralha; noite após noite, até que um dia os tijolos esfacelem e ela se sinta menos só.