Quem sou eu?
Eu já nem sei quantas horas da minha vida gastei girando em torno dessa questão. É como um vórtice de pensamento. Eu sempre gostei deles, dos vórtices, pois eles ocupam um tanto de tempo e sempre deixam a sensação de que o tempo gasto com nada foi produtivo. É um jeito de enganar a si mesmo. E eu entendo do que estou falando: Eu sou um tipo de às da auto-enganação.
Isso responde satisfatoriamente a pergunta inicial? Acho que não. Quero dizer, isso depende. Você aprendeu a se contentar com qualquer coisa? Não? Tudo bem, então me dê uma história. Uma que pareça interessante, daquelas que dariam um romance desses de auto-biografia. Pronto, agora eu vou tentar vivê-lo, e se parecer que valeu a pena eu volto pra escrever a história depois.
Onze anos se passaram e eu não escrevi nada. Isso quer dizer que nada valeu a pena, certo? Acontece que eu nem saberia explicar o que significa valer a pena, pra começarmos a nossa conversação.
Então, eis a história da minha vida: Eu era uma garota, que não era como as outras garotas. Ao mesmo tempo eu era exatamente como outra pessoa qualquer no mundo:
indomável na essência.
egocêntrico na essência.
Mal educada na essência.
sozinha como essência.
Não posso negar que houve tentativa de educação. Tentaram me ensinar um tanto de coisa. Desde crochê até palavrões. Só que as coisas sempre entraram meio rasgadas e sem graça. Eu sempre tive esse dom pra histórias, sabe? Então toda essa bobagem de ensinamento moral que tentam enfiar goela abaixo quando a gente é criança, isso tudo descia rasgando, meio sem cor. Eu pegava tudo, vomitava no chão e construía uma nova versão mais colorida dentro da minha cabeça, uma mais interessante, que meu imaginário acharia melhor de ler em um romance. Por muito tempo ninguém me disse que eu não podia fazer isso. Assim, se me entregavam um mundo em tons de cinza, eu tinha uma coleção imaginária de lápis de cor,e não fazia sentido não usá-los. Por que não colorir tudo de um jeito melhor pra mim? Ora, por que se você o fizer, vão trocar o livro das regras em cinza pro livro das regras em cores imaginárias. Esse é o jeito que o mundo funciona, Julia. O mundo é só um lugar de gente falando com propriedade do que não conhece, e ele funciona assim girando, uma volta por dia.
Lidar com o mundo? Ah! Então eu lidava. Quem sou eu? Uma pessoa que lida com a vida. E na vida, tudo é um jogo. Tudo sempre foi um jogo. E se chamar de
jogo não é sério e suficiente pra você, eu posso mudar a expressão para agradá-lo: A vida, em nossa sociedade, é composta de uma série de procedimentos feitos pra manter a sua cabeça
limpa o suficiente pra você não olhar pra onde não deve (na maior parte do tempo: pra dentro). E eu não queria olhar para os meus demônios. Pelos relances que tive deles, em momentos de extrema auto-honestidade acidental ao longo desses anos, eu sei que se o fizer nunca mais serei capaz de ler um mundo como é descrito nos manuais.
Como exercício de elucidação eu posso te ensinar como seguir algum desses procedimentos (ou jogos) de viver a vida do manual. Você pode passar horas e horas, jogando sudoku ou estudando física, por exemplo, só pra ocupar a cabeça e fingir que é capaz de viver sem respostas (perguntas). Porém, se você erra no equilíbrio, a sociedade vai te dar uma paulada de cassetete pra te lembrar que (como você é um covarde) você ainda está vivendo entre os pilares da moral e dos bons costumes. Por isso, se você erra na medida e, digamos, passa o dia inteiro jogando sudoku, a sua cabeça se distrai, mas as suas notas em física vão cair e você vai se perguntar “por que eu fiz essas escolhas mesmo?”. Por outro lado, se você passa o dia inteiro estudando física, as suas notas vão ir muito bem, mas eventualmente você não vai ficar sabendo que a sua última banda favorita lançou um novo CD, e você vai voltar ao ponto: “Por que fiz essas escolhas? “. A Regra Zero do jogo é balancear as coisas. E daí vem toda a bobagem da vida como ela é: (E quanta bobagem!) Como: Cresça, seja alguém. Vá para a faculdade, arrume um emprego, pratique um esporte, escolha uma banda favorita, vá ao cinema, não beba tanto, vote com consciência, se envolva em trabalho comunitário, recicle, encontre sua tribo, entenda o seu lugar no mundo, seja alguém. Reúna os seus iguais,
cuide dos seus iguais, arranje um companheiro(a), constitua família. Nunca olhe pra trás (dentro). Entendeu? Sim? Agora volte ao início do jogo, e é a sua vez no comando: eduque (aliene). Mas faça diferente: não seja como os outros, você não quer que seus filhos sejam só mais pessoas no mundo. Eles são diferentes. Foi exatamente isso o que eu seus pais disseram? "Você é diferente, mas você poderia parecer mais normal, sabe?" Funcionou até aqui, não? Repita. O mundo ia ser melhor se você não
tentasse parecer tão diferente. Que se danem! Eles nem sabem o que é o mundo, pra começo de conversa.
O mundo é um conjunto de círculos, definidos a partir de um único ponto. Existem círculos internos e externos. Guerras começam e pessoas morrem dependendo de qual círculo do outro você tentar ultrapassar com o seu ponto central. Existe o círculo que define como o mundo te vê e outro mais externo que define como você quer que o mundo te veja. Existem círculos que ninguém além de você nunca verá nem a cor (e que você pode passar a vida fingindo não ver). E existe um círculo, o mais interno de todos, dentro do qual habitam você e os seus demônios. Sim, são muitos círculos para uma única existência. Você provavelmente vai querer passar a vida toda distraída com os mais externos: é a forma mais trivial de evitar ficar sozinho com os seus demônios.
E quem sou eu? Uma pessoa que vive dentro dos seus círculos sempre fazendo um velho acordo comigo mesma: ainda é cedo pra começar a conversar com seus demônios, Julia (e se eles te convencerem a ficar?). Você gosta deles e você se sente estranha por isso. (Estranha por que você gosta, e o mundo pensa que você deveria evitá-los.) Quantas vezes já não estivemos aqui?
Você esteve lá, desde o princípio. No círculo, com eles. E você viu a verdade. Não importa quem você é. Você conhece a sua inteligência. Você sabe que não adianta deixar tudo às traças, que o mínimo esforço descuidado põe todas as engrenagens a funcionar e assim você poderia ser o que quisesse: uma bióloga, uma engenheira, uma médica, uma mãe de família. Você poderia escolhido a roupagem que quisesse, e até mesmo ter vivido o resto da vida com o cabelo pintado de azul. Mas você escolheu a física, por que a física é estereotipada como a beira do precipício. E você gosta de viver lá, na solitude da beira do precipício. Você só queria uma desculpa, uma disfarce.
Quem sou eu?
Ora, eu sou um grande clichê! Uma moça bonitinha dividida entre o ser e o não ser. Uma moça que andou e andou em círculos e agora está aqui, vivendo sozinha num estúdio de 24 metros quadrados no charmoso centro de uma simpática cidade cercada de monumentais montanhas do velho continente. E é tudo muito poético e muito caricato. E ela sempre curtiu "caricato". E ela está aqui, e não entende a língua deles e nem eles entendem a dela. E ela está só, dentro dessas paredes. Ela está só daquela maneira que sempre temeu. Ela está só daquela forma que sempre evitou estar. E ela gosta disso. Ela gosta, por que ela se olha no espelho ela vê todos os demônios claramente dentro de si. E ela gosta deles e de suas cores, e do seu fulgurar. E ela gosta de ser ela mesma dessa forma tosca e crua. Ela gosta das cores distorcidas que o mundo tem, vistas de dentro do seu próprio círculo. E ela lembra de todas as suas tentativas de abafar seus demônios por detrás de uma muralha de estabilidade. Ela gosta, por que esse momento de solitude é o único em que ela não deve nada a ninguém. Ela gosta de poder fazer o que quiser: seja o que se quer passar o dia inteiro de pijamas, beijar todo mundo que ela ver pela frente, ou só dançar de forma esquisita no meio da tarde em torno daquele círculo que é só seu.
O que você quer ser quando crescer?
Você queria
querer ser normal e seguir o manual que tanto leu. Mas você já cruzou aquela linha no sentido ao contrário do exterior. Isso foi a muito tempo atrás. E você têm passado todo esse tempo fingindo não ter dado o ponta pé inicial. Adiando. Adiando. Sabe?, não tem mais volta. não importa o quanto você adie. Você já é livre. Agora ria sozinha, dance com seus demônios e
então escreva, Julia, escreva.